A Fiera do Livro
2 comentários domingo, 28 de dezembro de 2014A maior parte das pessoas que trabalham na indústria do livro não é supersticiosa. Somos gente da razão mas ainda assim há um ponto em que acabamos todos por ceder ao sobrenatural: o facto de que seja qual for a data para a qual for apontada a realização da Feira do Livro, haverá sempre - geralmente nos primeiros dias - mau tempo ou pelo menos uns diazitos de aguaceiros.
Penso que poderíamos apontar a Feira do Livro e a sua "maldição" num sentido mais positivo. Porque não organizar a Feira do Livro de Lisboa nos pontos de maior seca? Em cabo Verde, por exemplo; no Biafra, no Alentejo, nas serras que costumam ser devoradas por incêndios no Verão. As opções são bastantes e diversas e aliar a cultura à descentralização (ou pelo contrário, levar Lisboa a todo o lado) e à protecção do ambiente pode ser um excelente meio de promoção do livro e da leitura.
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Penso que poderíamos apontar a Feira do Livro e a sua "maldição" num sentido mais positivo. Porque não organizar a Feira do Livro de Lisboa nos pontos de maior seca? Em cabo Verde, por exemplo; no Biafra, no Alentejo, nas serras que costumam ser devoradas por incêndios no Verão. As opções são bastantes e diversas e aliar a cultura à descentralização (ou pelo contrário, levar Lisboa a todo o lado) e à protecção do ambiente pode ser um excelente meio de promoção do livro e da leitura.
Livros do Ano 2014
0 comentários terça-feira, 23 de dezembro de 2014Como de costume, seguem as minhas escolhas. Como de costume escolho apenas de entre o que já li (na edição portuguesa ou noutras línguas antes de traduzido). Como de costume a ordem nada significa.
- Outras vozes, outros lugares de Truman Capote (Sextante). O romance de estreia de Capote e provavelmente a melhor coisa que escreveu.
- Karl Marx de Isaiah Berlin (Edições 70). A vantagem de uma biografia que foi sendo actualizada edição atrás de edição e aquilo que a torna num objecto único é a evolução da perspectiva do autor e da perspectiva sobre Marx ao longo de boa parte do século XX.
- A Invenção do Amor de José Ovejero (Alfaguara). Uma pequena pérola literária sobre as histórias que inventamos para nos embalarmos.
- Duzentos poemas de Emily Dickinson (Relógio d'Água). E. Dickinson é "a minha poetisa". Não posso dizer muito mais. Boa tradução.
- O Homem Verde de Kingsley Amis (Quetzal). Um dos meus livros preferidos de K. Amis. Uma história sobrenatural em que o mal toma conta da vida de um estalajadeiro do interior do reino unido. De certa forma é uma versão do "Castelo do homem ancorado" de Huysmans.
- 60 histórias de Donald Barthelme (Antígona). Barthelme é um pesadelo de para traduzir e nesta antologia como na anterior conseguimos, ainda assim, apanhar o essencial de um escritor que rompe os limites da ficção.
- Restaurante canibal de Gabriel Magalhães (Aletheia). Um "divertimento" de Gabriel magalhães que, como de costume, surpreende pela leveza da sua prosa.
- História e Utopia de E. M. Cioran (Letra Livre). Uma obra essencial do pensamento moderno.
- Jardins de cristais de Sérgio Rodrigues (Gradiva). Apesar de ser muito "tese" ainda assim um belíssimo livro. Um daqueles livros que só aparecem raramente mas ficam como referência.
- Notícias em três linhas de Félix Fénéon (Exclamação). Se eu tivesse de escolher um livro do ano, este seria um provável candidato. Bela estreia para a colecção dirigida pelo Rui Manuel Amaral. (ah, e sim, o micro-conto tem bem mais de 100 anos mas essa conversa ficará para segundas núpcias.)
- Mar de Afonso Cruz (Alfaguara). Novo tomo da enciclopédia que Afonso Cruz tem vindo a escrever. Sempre original.
- Diários de George Orwell (Dom Quixote).
- Obcénica de Hilda Hilst e André da Loba (Orfeu Negro). O livro mais fresco do ano.
- A Conversa de Bolzano de Sándor Márai (Dom Quixote). Um dos maiores romances da literatura europeia moderna. O romance fundamental de Márai. Não li esta tradução.
- A Imperatriz Viúva - Cixi, a Concubina Que Mudou a China de Jung Chang (Quetzal). Uma das biografias do ano; a autora de Cisnes Selvagens, revela a importância da mulher que segurou a China impedindo o seu estilhaçar. Não li esta tradução.
- Um bárbaro em casa de Frederico Pedreira (Língua Morta). Os primeiros dois contos estão mal revistos mas mesmo assim a leitura prende. Li poucos autores nacionais este ano mas este livro foi um dos melhores e uma boa surpresa.
- A estrada para Oxiana de Robert Byron (Tinta-da-china). Quiçá o melhor livro da magnífica colecção dirigida pelo Carlos Vaz Marques. Só não o digo expressamente porque não li todos. Não li esta tradução.
- Ética mínima de António Fidalgo (Gradiva). Um livro do qual ninguém escreveu e que passará despercebido mas que devia ser manual para a todos os portugueses.
- Nove História de J. D. Salinger (Quetzal). Mais um exemplo da escassa obra de Salinger que comprova o seu génio. Não li esta tradução)
- Contos e diários de Isaac Babel (Relógio d'Água). Aqui há uns anos atrás quase incluí o livro de contos de Isaac Babel publicado pela mesma editora na minha lista de livros do ano e não quis deixar de lado a oportunidade de comentar que me incomodava o facto de ser uma selecção de 300 e tal páginas quando os contos completos do autor tinham pouco mais de 400 páginas. Presumo que esta seja a edição completa acrescida dos Diários. Um livro essencial da literatura moderna. Não li esta tradução.
- O visitante da noite & outros contos de B. Traven (Antígona). O misterioso B. Traven, um dos maiores enigmas da literatura moderna, volta às livrarias décadas depois da edição da sua obra-prima. Eu estive quase a apanhar o autor quando estava na Babel. Fico contente que apareça finalmente em português e espero mais obras. Não li esta tradução.
- Obra Escrita. Volume I de João César Monteiro (Letra livre). Como é que, até agora, este livro não apareceu em nenhuma das listas de livros do ano?? Façam-se o favor de comprar e deleitem-se.
- Nós, Os Afogados de Carsten Jensen (Bertrand). Romance narrado por uma aldeia. Épico marítimo, história de navegadores, uma saga nórdica moderna. Não li esta tradução mas como é do João Reis, deve ser boa.
- Contos e Novelas de Saul Bellow Vol 1 (Relógio d'Água). Mais outro livro ignorado em quase todas as escolhas do ano. Não li esta tradução.
- A casa azul de Cláudia Clemente (Planeta). Romance de estreia da Cláudia Clemente que se narra a 4 vozes que correspondem aos elementos e constroem um puzzle que atravessa a história de Portugal durante o regime salazarista e após. Lê-se como um policial em que o crime é a paixão (seja ela pelo cinema ou por seres humanos).
- Autobiografia de Thomas Bernhard (Sistema Solar). A Sistema Solar continua a tradição editorial da A&A na publicação T. Bernhard com a edição da biografia literária do ano.
- Uivo e Outros Poemas de Allen Ginsberg (Relógio d'Água). Deve ser complicado para os críticos falar do livro de poesia mais lido da história da literatura americana, imagino que o silêncio nas escolhas do ano se deva à dicotomia difícil de resolver entre um livro comercialmente bem sucedido e o facto de ser poesia. Não li esta tradução.
- A Sombra da Rota da Seda de Colin Thubron (Bertrand). Para rivalizar com o livro de Robert Byron. Talvez o melhor livro de viagens publicado este ano; o de Byron é já um clássico, este provavelmente virá a sê-lo. Não li esta tradução.
- Stoner de John Williams (Dom Quixote). Nunca imaginei ver este livro publicado entre nós. Parabéns a quem teve a coragem de o editar. John Williams, juntamente com Richard G. Sterne são aquilo que a crítica americana costuma designar por "writers' writers" ou seja, escritores para escritores. Stoner é o melhor livro de Williams e um dos poucos romances modernos americanos dignos de nota.
- Os luminares de Eleanor Catton (Bertrand). Um calhamaço como já não sói. Um romance como já não sói. Vencedor do Booker há um ou dois anos atrás, o livro da canadiana nascida na Nova Zelândia (ou será que é o contrário?) é um objecto estranho na literatura moderna, um grande romance paisagem sobre um crime e a sua investigação numa pequena cidadezinha onde um aparente crime une todos os homens de poder de uma comunidade em formação no salão de um hotel e um estranho acabado de chegar se propõe a ouvir a história que cada um tem para contar. Grande livro, em todos os sentidos. Não li esta tradução.
- Sobre a violência de Hannah Arendt (Relógio d'Água). H.Arendt é provavelmente uma das vozes mais importantes do século XX. magnífico é que vão aparecendo livros seus, revelando espantosamente a sua actualidade (e não estou a falar de situações concretas,a violência de que fala a autora e tudo o que aborda é sempre supra histórico ainda que baseado na vivência que teve de momentos de viragem na história do século XX).
- Contos Reunidos de Aldous Huxley (Antígona). Huxley tem vindo a ser posto um pouco de lado sem qualquer justificação. A Antígona está, felizmente, a salvá-lo do oblívio. Não li esta tradução.
- O Demónio na Cidade Branca de Erik Larson (Bertrand). Brilhante livro de história narrativa e investigação histórica que segue o caso verdadeiro de uma perseguição a um serial-killer em pleno auge do nazismo. Lê-se como um romance apesar da riqueza de pormenores e informações. Não li esta tradução.
_______________________________
Por último apenas uma nota: ouvi a notícia no começo do ano que seria apresentada uma tradução do notável "Anatomia da Melâncolia" de Demócrito, o Novo (pseudónimo do monge Robert Burton). Cairam-me os queixos. É um dos meus clássicos de eleição mas, bolas! tem quase 1000 páginas. Eis portanto a minha surpresa quando vejo uma edição que mal chega às 200 páginas publicada pela Quetzal.
Creio que já o disse em tempos mas não gosto de versões condensadas. esta edição pretende ser uma espécie de best-of, uma antologia dos melhores momentos mas isso não se pode fazer a um livro que flui como um todo (muito menos a um livro que não está disponível na sua completude no nosso mercado). Gaste-se dinheiro noutra qualquer edição e não se façam crimes destes.
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- Outras vozes, outros lugares de Truman Capote (Sextante). O romance de estreia de Capote e provavelmente a melhor coisa que escreveu.
- Karl Marx de Isaiah Berlin (Edições 70). A vantagem de uma biografia que foi sendo actualizada edição atrás de edição e aquilo que a torna num objecto único é a evolução da perspectiva do autor e da perspectiva sobre Marx ao longo de boa parte do século XX.
- A Invenção do Amor de José Ovejero (Alfaguara). Uma pequena pérola literária sobre as histórias que inventamos para nos embalarmos.
- Duzentos poemas de Emily Dickinson (Relógio d'Água). E. Dickinson é "a minha poetisa". Não posso dizer muito mais. Boa tradução.
- O Homem Verde de Kingsley Amis (Quetzal). Um dos meus livros preferidos de K. Amis. Uma história sobrenatural em que o mal toma conta da vida de um estalajadeiro do interior do reino unido. De certa forma é uma versão do "Castelo do homem ancorado" de Huysmans.
- 60 histórias de Donald Barthelme (Antígona). Barthelme é um pesadelo de para traduzir e nesta antologia como na anterior conseguimos, ainda assim, apanhar o essencial de um escritor que rompe os limites da ficção.
- Restaurante canibal de Gabriel Magalhães (Aletheia). Um "divertimento" de Gabriel magalhães que, como de costume, surpreende pela leveza da sua prosa.
- História e Utopia de E. M. Cioran (Letra Livre). Uma obra essencial do pensamento moderno.
- Jardins de cristais de Sérgio Rodrigues (Gradiva). Apesar de ser muito "tese" ainda assim um belíssimo livro. Um daqueles livros que só aparecem raramente mas ficam como referência.
- Notícias em três linhas de Félix Fénéon (Exclamação). Se eu tivesse de escolher um livro do ano, este seria um provável candidato. Bela estreia para a colecção dirigida pelo Rui Manuel Amaral. (ah, e sim, o micro-conto tem bem mais de 100 anos mas essa conversa ficará para segundas núpcias.)
- Mar de Afonso Cruz (Alfaguara). Novo tomo da enciclopédia que Afonso Cruz tem vindo a escrever. Sempre original.
- Diários de George Orwell (Dom Quixote).
- Obcénica de Hilda Hilst e André da Loba (Orfeu Negro). O livro mais fresco do ano.
- A Conversa de Bolzano de Sándor Márai (Dom Quixote). Um dos maiores romances da literatura europeia moderna. O romance fundamental de Márai. Não li esta tradução.
- A Imperatriz Viúva - Cixi, a Concubina Que Mudou a China de Jung Chang (Quetzal). Uma das biografias do ano; a autora de Cisnes Selvagens, revela a importância da mulher que segurou a China impedindo o seu estilhaçar. Não li esta tradução.
- Um bárbaro em casa de Frederico Pedreira (Língua Morta). Os primeiros dois contos estão mal revistos mas mesmo assim a leitura prende. Li poucos autores nacionais este ano mas este livro foi um dos melhores e uma boa surpresa.
- A estrada para Oxiana de Robert Byron (Tinta-da-china). Quiçá o melhor livro da magnífica colecção dirigida pelo Carlos Vaz Marques. Só não o digo expressamente porque não li todos. Não li esta tradução.
- Ética mínima de António Fidalgo (Gradiva). Um livro do qual ninguém escreveu e que passará despercebido mas que devia ser manual para a todos os portugueses.
- Nove História de J. D. Salinger (Quetzal). Mais um exemplo da escassa obra de Salinger que comprova o seu génio. Não li esta tradução)
- Contos e diários de Isaac Babel (Relógio d'Água). Aqui há uns anos atrás quase incluí o livro de contos de Isaac Babel publicado pela mesma editora na minha lista de livros do ano e não quis deixar de lado a oportunidade de comentar que me incomodava o facto de ser uma selecção de 300 e tal páginas quando os contos completos do autor tinham pouco mais de 400 páginas. Presumo que esta seja a edição completa acrescida dos Diários. Um livro essencial da literatura moderna. Não li esta tradução.
- O visitante da noite & outros contos de B. Traven (Antígona). O misterioso B. Traven, um dos maiores enigmas da literatura moderna, volta às livrarias décadas depois da edição da sua obra-prima. Eu estive quase a apanhar o autor quando estava na Babel. Fico contente que apareça finalmente em português e espero mais obras. Não li esta tradução.
- Obra Escrita. Volume I de João César Monteiro (Letra livre). Como é que, até agora, este livro não apareceu em nenhuma das listas de livros do ano?? Façam-se o favor de comprar e deleitem-se.
- Nós, Os Afogados de Carsten Jensen (Bertrand). Romance narrado por uma aldeia. Épico marítimo, história de navegadores, uma saga nórdica moderna. Não li esta tradução mas como é do João Reis, deve ser boa.
- Contos e Novelas de Saul Bellow Vol 1 (Relógio d'Água). Mais outro livro ignorado em quase todas as escolhas do ano. Não li esta tradução.
- A casa azul de Cláudia Clemente (Planeta). Romance de estreia da Cláudia Clemente que se narra a 4 vozes que correspondem aos elementos e constroem um puzzle que atravessa a história de Portugal durante o regime salazarista e após. Lê-se como um policial em que o crime é a paixão (seja ela pelo cinema ou por seres humanos).
- Autobiografia de Thomas Bernhard (Sistema Solar). A Sistema Solar continua a tradição editorial da A&A na publicação T. Bernhard com a edição da biografia literária do ano.
- Uivo e Outros Poemas de Allen Ginsberg (Relógio d'Água). Deve ser complicado para os críticos falar do livro de poesia mais lido da história da literatura americana, imagino que o silêncio nas escolhas do ano se deva à dicotomia difícil de resolver entre um livro comercialmente bem sucedido e o facto de ser poesia. Não li esta tradução.
- A Sombra da Rota da Seda de Colin Thubron (Bertrand). Para rivalizar com o livro de Robert Byron. Talvez o melhor livro de viagens publicado este ano; o de Byron é já um clássico, este provavelmente virá a sê-lo. Não li esta tradução.
- Stoner de John Williams (Dom Quixote). Nunca imaginei ver este livro publicado entre nós. Parabéns a quem teve a coragem de o editar. John Williams, juntamente com Richard G. Sterne são aquilo que a crítica americana costuma designar por "writers' writers" ou seja, escritores para escritores. Stoner é o melhor livro de Williams e um dos poucos romances modernos americanos dignos de nota.
- Os luminares de Eleanor Catton (Bertrand). Um calhamaço como já não sói. Um romance como já não sói. Vencedor do Booker há um ou dois anos atrás, o livro da canadiana nascida na Nova Zelândia (ou será que é o contrário?) é um objecto estranho na literatura moderna, um grande romance paisagem sobre um crime e a sua investigação numa pequena cidadezinha onde um aparente crime une todos os homens de poder de uma comunidade em formação no salão de um hotel e um estranho acabado de chegar se propõe a ouvir a história que cada um tem para contar. Grande livro, em todos os sentidos. Não li esta tradução.
- Sobre a violência de Hannah Arendt (Relógio d'Água). H.Arendt é provavelmente uma das vozes mais importantes do século XX. magnífico é que vão aparecendo livros seus, revelando espantosamente a sua actualidade (e não estou a falar de situações concretas,a violência de que fala a autora e tudo o que aborda é sempre supra histórico ainda que baseado na vivência que teve de momentos de viragem na história do século XX).
- Contos Reunidos de Aldous Huxley (Antígona). Huxley tem vindo a ser posto um pouco de lado sem qualquer justificação. A Antígona está, felizmente, a salvá-lo do oblívio. Não li esta tradução.
- O Demónio na Cidade Branca de Erik Larson (Bertrand). Brilhante livro de história narrativa e investigação histórica que segue o caso verdadeiro de uma perseguição a um serial-killer em pleno auge do nazismo. Lê-se como um romance apesar da riqueza de pormenores e informações. Não li esta tradução.
_______________________________
Por último apenas uma nota: ouvi a notícia no começo do ano que seria apresentada uma tradução do notável "Anatomia da Melâncolia" de Demócrito, o Novo (pseudónimo do monge Robert Burton). Cairam-me os queixos. É um dos meus clássicos de eleição mas, bolas! tem quase 1000 páginas. Eis portanto a minha surpresa quando vejo uma edição que mal chega às 200 páginas publicada pela Quetzal.
Creio que já o disse em tempos mas não gosto de versões condensadas. esta edição pretende ser uma espécie de best-of, uma antologia dos melhores momentos mas isso não se pode fazer a um livro que flui como um todo (muito menos a um livro que não está disponível na sua completude no nosso mercado). Gaste-se dinheiro noutra qualquer edição e não se façam crimes destes.
A destruição do sentido
0 comentários quarta-feira, 13 de agosto de 2014
Para a Dóris Graça-Dias com quem me fartei
de falar sobre este tipo de coisas
Há uns anos atrás escrevi um texto num blogue em que criticava a formação e a má preparação da "maior parte" de uma nova geração de tradutores. As respostas que se seguiram deixaram-me perplexo: para além de provirem da "menor parte" dos referidos tradutores, provavam que estes não tinham lido e interpretado o que eu tinha escrito. Ora eu sou editor e não escritor pelo que sei do valor (ou melhor da falta dele) da minha escrita; mas isso não quer dizer que eu não tivesse sido explícito no que tinha escrito e claro relativamente a quem tinha como assunto.
Isso levou-me a ter cedo uma consciência clara da incapacidade de interpretação das palavras que grassa nos nossos tempos. Essa mesma incapacidade interpretativa tem sido sobejamente mencionada, ano após ano, nos relatórios sobre o aproveitamento escolar e a qualidade de ensino mas não é, de forma alguma, exclusiva das novas gerações e isso perturbava-me pois não percebia bem a origem do fenómeno.
Recentemente li um livro que me foi recomendado por um amigo, livro no qual eu nunca teria tropeçado e, mesmo que o tivesse feito, dificilmente o teria lido (obrigado Robert, portanto). trata-se de um pequeno ensaio publicado exclusivamente em formato digital The distruction of Meaning de Simon Hardy. Nele, o autor aborda de uma forma eminentemente política a perda do sentido das palavras e, inerentemente, a sua perda de valor.
Não é que o livro seja de forma alguma deslumbrantemente elucidativo mas foi a chave para poder ligar algumas noções e pensamentos dispersos, algumas hipóteses e teorias para a compreensão deste fenómeno que está a por em causa o próprio tecido social.
A visão de conjunto que o problema arrasta é, assim, transversal: a palavra, ao longo do século XX, perdeu o seu valor. Os motivos são muitos: Hardy aponta alguns, Nelson Rodrigues na sua crónica sobre a "ascensão do idiota" apontava outros, Natalie Sarraute, no seu curto e essencial ensaio (que já referi uns milhares de vezes) "A Era da Suspeita", toca em mais alguns.
De uma forma ou de outra acabamos num problema central e simples que é válido para a palavra como para uma série de outras coisas na vida: nem todos temos talento para a palavra. Da mesma forma como poucos têm talento para o futebol ou para serem canalizadores. O facto, contudo, é que a modernidade (e a pós-modernidade que, salvo no que toca a arquitectura, são a mesma coisa) e as mudanças socio-políticas de finais do século XIX e de todo o século XX liberalizaram a utilização da palavra. Todos se julgam habilitados a utilizá-la conscientes ou não do seu poder e valor.
Em termos concretos e desde tempos antigos, Deus é a palavra e vice-versa. Acredite-se ou não. esta forma de ver implica a importância dada ao verbo pelas comunidades e sociedades desde sempre.
Em sociedades em que poucos tinham a "palavra de lei" (não estou, obviamente a falar da comunicação do dia a dia, estou a falar da palavra como forma de poder: o poder de dar ordens, o poder de reformar, de legislar, etc) a palavra tinha valor. Quem detivesse a palavra e a quebrasse perdia a honra e perder a honra quase sempre significava perder o seu lugar social.
Se pensarmos que a modernidade afasta o fulcro de importância da palavra para a sensação percebemos onde tudo isto nos vai levar. Entramos na era da suspeita e a palavra, outrora garante de honra e compromisso, não é passível de ser confiável. Simon Hardy chega a este ponto através da política e das organizações mas o problema entra nas nossas vidas por todos os lados.
Com efeito, em sociedades em que a maioria das pessoas usa regularmente ao longo da sua vida raramente mais de 300 a 500 vocábulos, porque não é dotada para a palavra (volto a dizer: como nem todos são dotados para o futebol ou para serem padres - não é qualquer tipo de depreciação, é uma constatação natural); mas em que essa maioria, por causa de todo um sistema socio-político que defende o "novo indivíduo", defende a limitação da riqueza vocabular (veja-se o politicamente correcto norte-americano, entretanto exportado, com mais ou menos consciência, para muitos outros países), atacando a ambiguidade e a polivalência de sentidos como se o mal estivesse aí, quando o mal está na destruição de sentido.
Este é um mal social e é tão mais evidente se considerarmos que há dois tipos de países/sociedades, onde se combate ainda esta situação: os países com melhores níveis de ensino generalista e cultural geral per capita; e os regimes tirânicos/ditatoriais. As duas faces da moeda.
Se exceptuarmos os dois extremos apontados, a maior parte do que sobra são países onde os políticos e as organizações (de uma forma geral todos quantos estão em cargos de responsabilidade com poder sobre outros) usam a palavra sem qualquer sentido de honra e/ou compromisso e as populações aceitam isso com uma leve revolta que tende a esmorecer perante uma atitude de aceitação, uma vez que também quem não está no poder todos os dias vai despindo a palavra de valor.
Estamos muito longe das "artes da mentira" de Twain ou Wilde que, apesar de tudo, valorizavam a palavra uma vez que defendiam a sua utilização mesmo quando desprovida de sentido ou subvertendo-o. Estamos na era da banalização da palavra mas, como aconteceu no começo da modernidade relativamente ao edifício literário, ainda não temos um novo edifício para substituir o que queremos demolir. E destruir o edifício da palavra é querer destruir o alicerce sobre o qual erigimos durante milénios a nossa sociedade. Não pode ser feito levianamente.
A destruição da comunicação pode levar à ruptura do tecido social e à aproximação de uma nova barbárie.
E o que aconteceu, no meio disto tudo, aos que detinham e detêm o talento para a palavra? Para além de terem sido atropelados pelo estouro, começaram a perceber - porque são os únicos que têm memória (lembremos que a função primária da palavra e da linguagem é definir as fronteiras do nosso mundo relativamente ao presente mas também ao passado) - que foram eles os culpados de toda a situação. A tendência para todo aquele que percebe que tem poder para mudar o mundo e que uma acção sua pode destruí-lo é, na maior parte das vezes, a inércia. Porque o futuro é sempre incerto e os resultados das últimas acções bem-intencionadas (socialismos e demais) resultaram "nisto tudo".
Será que o melhor é não agir, esta é, para muitos, a questão. Para outros a questão centra-se em saber se ainda é possível agir pois com a desvalorização do sentido da palavra, o seu poder para mudar a sociedade perde-se.
Se acham que tudo isto é muito abstracto, vejam os exemplos do dia-a-dia dados por Simon Hardy e comecem a olhar à vossa volta.
A perda do valor da palavra é a perda do sentido e a perda do contexto, não é mais possível interpretar porque a linguagem passa a ser directa mas ao sê-lo perde poder pela banalização. É à palavra que estavam, afinal, associados os valores humanos fundamentais: respeito, honra, dever, integridade, humor...
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