A destruição do sentido

0 comentários quarta-feira, 13 de agosto de 2014
Para a Dóris Graça-Dias com quem me fartei 
de falar sobre este tipo de coisas


Há uns anos atrás escrevi um texto num blogue em que criticava a formação e a má preparação da "maior parte" de uma nova geração de tradutores. As respostas que se seguiram deixaram-me perplexo: para além de provirem da "menor parte" dos referidos tradutores, provavam que estes não tinham lido e interpretado o que eu tinha escrito. Ora eu sou editor e não escritor pelo que sei do valor (ou melhor da falta dele) da minha escrita; mas isso não quer dizer que eu não tivesse sido explícito no que tinha escrito e claro relativamente a quem tinha como assunto.

Isso levou-me a ter cedo uma consciência clara da incapacidade de interpretação das palavras que grassa nos nossos tempos. Essa mesma incapacidade interpretativa tem sido sobejamente mencionada, ano após ano, nos relatórios sobre o aproveitamento escolar e a qualidade de ensino mas não é, de forma alguma, exclusiva das novas gerações e isso perturbava-me pois não percebia bem a origem do fenómeno.

Recentemente li um livro que me foi recomendado por um amigo, livro no qual eu nunca teria tropeçado e, mesmo que o tivesse feito, dificilmente o teria lido (obrigado Robert, portanto). trata-se de um pequeno ensaio publicado exclusivamente em formato digital The distruction of Meaning de Simon Hardy. Nele, o autor aborda de uma forma eminentemente política a perda do sentido das palavras e, inerentemente, a sua perda de valor.

Não é que o livro seja de forma alguma deslumbrantemente elucidativo mas foi a chave para poder ligar algumas noções e pensamentos dispersos, algumas hipóteses e teorias para a compreensão deste fenómeno que está a por em causa o próprio tecido social.

A visão de conjunto que o problema arrasta é, assim, transversal: a palavra, ao longo do século XX, perdeu o seu valor. Os motivos são muitos: Hardy aponta alguns, Nelson Rodrigues na sua crónica sobre a "ascensão do idiota" apontava outros, Natalie Sarraute, no seu curto e essencial ensaio (que já referi uns milhares de vezes) "A Era da Suspeita", toca em mais alguns.

De uma forma ou de outra acabamos num problema central e simples que é válido para a palavra como para uma série de outras coisas na vida: nem todos temos talento para a palavra. Da mesma forma como poucos têm talento para o futebol ou para serem canalizadores. O facto, contudo, é que a modernidade (e a pós-modernidade que, salvo no que toca a arquitectura, são a mesma coisa) e as mudanças socio-políticas de finais do século XIX e de todo o século XX liberalizaram a utilização da palavra. Todos se julgam habilitados a utilizá-la conscientes ou não do seu poder e valor.

Em termos concretos e desde tempos antigos, Deus é a palavra e vice-versa. Acredite-se ou não. esta forma de ver implica a importância dada ao verbo pelas comunidades e sociedades desde sempre.

Em sociedades em que poucos tinham a "palavra de lei" (não estou, obviamente a falar da comunicação do dia a dia, estou a falar da palavra como forma de poder: o poder de dar ordens, o poder de reformar, de legislar, etc) a palavra tinha valor. Quem detivesse a palavra e a quebrasse perdia a honra e perder a honra quase sempre significava perder o seu lugar social.

Se pensarmos que a modernidade afasta o fulcro de importância da palavra para a sensação percebemos onde tudo isto nos vai levar. Entramos na era da suspeita e a palavra, outrora garante de honra e compromisso, não é passível de ser confiável. Simon Hardy chega a este ponto através da política e das organizações mas o problema entra nas nossas vidas por todos os lados.

Com efeito, em sociedades em que a maioria das pessoas usa regularmente ao longo da sua vida raramente mais de 300 a 500 vocábulos, porque não é dotada para a palavra (volto a dizer: como nem todos são dotados para o futebol ou para serem padres - não é qualquer tipo de depreciação, é uma constatação natural); mas em que essa maioria, por causa de todo um sistema socio-político que defende o "novo indivíduo", defende a limitação da riqueza vocabular (veja-se o politicamente correcto norte-americano, entretanto exportado, com mais ou menos consciência, para muitos outros países), atacando a ambiguidade e a polivalência de sentidos como se o mal estivesse aí, quando o mal está na destruição de sentido.

Este é um mal social e é tão mais evidente se considerarmos que há dois tipos de países/sociedades, onde se combate ainda esta situação: os países com melhores níveis de ensino generalista e cultural geral per capita; e os regimes tirânicos/ditatoriais. As duas faces da moeda.

Se exceptuarmos os dois extremos apontados, a maior parte do que sobra são países onde os políticos e as organizações (de uma forma geral todos quantos estão em cargos de responsabilidade com poder sobre outros) usam a palavra sem qualquer sentido de honra e/ou compromisso e as populações aceitam isso com uma leve revolta que tende a esmorecer perante uma atitude de aceitação, uma vez que também quem não está no poder todos os dias vai despindo a palavra de valor.

Estamos muito longe das "artes da mentira" de Twain ou Wilde que, apesar de tudo, valorizavam a palavra uma vez que defendiam a sua utilização mesmo quando desprovida de sentido ou subvertendo-o. Estamos na era da banalização da palavra mas, como aconteceu no começo da modernidade relativamente ao edifício literário, ainda não temos um novo edifício para substituir o que queremos demolir. E destruir o edifício da palavra é querer destruir o alicerce sobre o qual erigimos durante milénios a nossa sociedade. Não pode ser feito levianamente.

A destruição da comunicação pode levar à ruptura do tecido social e à aproximação de uma nova barbárie.

E o que aconteceu, no meio disto tudo, aos que detinham e detêm o talento para a palavra? Para além de terem sido atropelados pelo estouro, começaram a perceber - porque são os únicos que têm memória (lembremos que a função primária da palavra e da linguagem é definir as fronteiras do nosso mundo relativamente ao presente mas também ao passado) - que foram eles os culpados de toda a situação. A tendência para todo aquele que percebe que tem poder para mudar o mundo e que uma acção sua pode destruí-lo é, na maior parte das vezes, a inércia. Porque o futuro é sempre incerto e os resultados das últimas acções bem-intencionadas (socialismos e demais) resultaram "nisto tudo".

Será que o melhor é não agir, esta é, para muitos, a questão. Para outros a questão centra-se em saber se ainda é possível agir pois com a desvalorização do sentido da palavra, o seu poder para mudar a sociedade perde-se.

Se acham que tudo isto é muito abstracto, vejam os exemplos do dia-a-dia dados por Simon Hardy e comecem a olhar à vossa volta.

A perda do valor da palavra é a perda do sentido e a perda do contexto, não é mais possível interpretar porque a linguagem passa a ser directa mas ao sê-lo perde poder pela banalização. É à palavra que estavam, afinal, associados os valores humanos fundamentais: respeito, honra, dever, integridade, humor...

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