Literatura de língua portuguesa na Ulisseia, um (ou 4) desafios

Já vos falei um pouco do que andava a fazer na Ulisseia mas este ano posso concretizar com mais propriedade ainda aquilo que pretendo fazer em termos da edição de obras de autores de língua portuguesa. Também nessa área, como nas restantes, o desafio que me foi feito é a edição de ficção de referência: publicar não apenas autores consagrados como novos autores que prometam vir a fazer parte de cânones futuros.

Claro que essa é uma escolha do editor e portanto gostaria mesmo de saber a vossa opinião - depois de lidos os livros - opiniões pelas contracapas são, no mínimo discutíveis.


Assim este ano o romance-choque de Fernando Esteves Pinto, «Brutal». Uma obra para quem gosta da literatura que dá socos, bem aveludados, no estômago do leitor (daqueles socos no estômago que sobem à cabeça porque obrigam a pensar). O Miguel Real disse já por várias vezes que o Fernando é dos poucos escritores portugueses a saber escrever - e como! - sobre sexo mas eu creio que vai muito para lá disso. Há algo de existencialista na sua escrita que o aproxima da força de um «Húmus», esse objecto estranho da nossa literatura, e de «A morte do palhaço», outro ainda mais estranho produto de Raul Brandão.

O livro segue duas idades de um mesmo personagem, fascinado por teatro, que narra trazendo em encenações palpitantes à boca da cena os traumas de infância que enformam a sua difícil relação com a sua companheira. Olhar e diálogo entre os diversos tempos sobre si mesmos e sobre os outros (tempos entenda-se) é um encadear de momentos vívidos escritos de forma inesquecível. Agora não o escondo: é um livro difícil. A Maria do Rosário teve o livro em sua posse mas admitiu que era um livro bom mas difícil de encontrar público. O que acham? São leitores preparados para pugilato literário ou daqueles que preferem ser acarinhados pelas suas leituras? Cada um destes tipos de leitor tem as suas vantagens e desvantagens, as suas glórias e misérias mas os primeiros são mais raros. 

Por outro lado um nome consagrado mas esquecido: a grande Maria Judite de Carvalho. Este será o seu único (e formalmente verdadeiro) romance (curto ou novela longa). Narradora maior da situação da mulher numa sociedade cada vez mais desumanizada.

MJC fala da solidão como poucos escritores em todo o mundo conseguiram: com uma verdade incómoda e impossível de contornar. Uma incomodidade que se torna física e asfixiante. De repente temos de pousar o livro e olhar em roda. Como dizia o Eduardo Pitta, provavelmente não com estas palavras que seguem por fraca memória, a escrita de MJC vale por todo um seminário de escrita criativa.

Curiosamente próximo do livro do Fernando Esteves Pinto está este também violento romance-choque do Paulo José Miranda (primeiro prémio Saramago) a quem desafiei para regressar à edição deste lado do canal - ele vive agora do outro lado do Atlântico.

Uma obra que põe a nu o vazio das relações modernas e a necessidade de uma violência física e psicológica para comunicar os sentimentos que não conseguimos sequer entender por nós próprios. Crítica do nosso mundo da comunicação em que comunicamos levianamente tudo o que temos de superficial para comunicar mas nunca nos abrimos. E quando o queremos fazer não há como.

Alguém há-de lembrar-se de um livro publicado pela Bertrand em Portugal, corria o ano de 1976. Uma obra proibida no Brasil aquando da sua publicação poucos anos antes e só "liberado" 9 anos depois. Cá também esteve fora de circulação até 1976. Chamava-se «Zero» e durante a Expo 98 foi considerada uma das 100 obras de língua portuguesa do século XX.

«Zero», que vamos publicar em Outubro comemorando, cá como no Brasil, o aniversário da sua polémica publicação, será provavelmente o único romance verdadeiramente inovador do século XX depois das experiências modernistas joycianas (ok, a heresia é minha). Este outro, livro com que começamos a publicação das obras de Loyola Brandão por cá, é algo totalmente diferente mas que, também ele, foi inovador na forma como abordou questões ambientais naquilo que poderia chamar-se um pan-romance, sobretudo pela pluralidade de leituras que permite e pela pluralidade de leitores a quem abre a porta.

Diz-se muitas vezes que os autores brasileiros não vendem em Portugal e até é verdade. À excepção daqueles grandes nomes incontornáveis, qualquer nome que se apresente não merece sequer uma palavra da crítica, quanto mais a atenção dos leitores. Daí também o meu desafio: se é um leitor que gosta de qualquer uma seguintes coisas (independentemente se gosta das outras), se gosta de uma grande história seja ela de amor, policial/thriller, ficção científica, ambientalista ou poética; se gosta de obras escritas numa linguagem aparentemente simples mas onde cada palavra para além de se poder ler à superfície encerra em si outros significados e uma poesia tremenda; se gosta de grandes romances metafóricos comparáveis, por exemplo, a «Ensaio sobre a cegueira», mas que vão muito para lá desse livro em qualidade literária propriamente dita e "inventividade", experimente umas páginas deste mundo onde o desaparecimento da camada de ozono obriga o ser humano a viver de noite e debaixo da terra, a comprar frascos com cheiro de flores ou terra molhada e onde, ainda assim, é tão difícil aceitar a nossa culpa em tudo isso como quebrar as regras de um amor.

É isto. Ficam os desafios e esperam-se as opiniões. 

6 comentários:

Anónimo disse...

Já pediu opiniões sobre a escrita "sexual" do Esteves a mulheres?

O contacto que tive com a (in)capacidade dele em escrever como se fosse mulher foi suficiente para o ter riscado do mapa há mais de 7 anos.

As mulheres que o leram e com as quais troquei opiniões, em conversas lisboetas, conimbricenses e em outros locais, apresentaram-me uma reacção de asco.

Fora isso, desejo-lhe boa sorte.

Jose Manuel

Hugo Xavier disse...

Caro José Manuel,
Compreendo perfeitamente o que me diz e até o que algumas leitoras poderão sentir mas, diz-me também quem tem acompanhado a evolução do escritor - porque eles também evoluem - que p Fernando há algum tempo já que passou um certo tipo de escrita sobre sexo. Um pouco como Henry Miller, a sua escrita tem muito sexo mas esse é meramente o espelho de superfície da obra. O Fernando está a escrever sobre coisas muito mais importantes e essa minha leitura tive oportunidade de a compartilhar com outras pessoas que também leram a obra (homens e mulheres), aquilo que de importante está lá é um complexo estudo sobre a violência (física, sexual e psicológica), as terríveis marcas que essa violência nos deixa na vida e que nos condicionam essa mesma vida. Para além disso, o FEP faz aqui uma brilhante brincadeira de troca de significações e símbolos, de comportamentos e normas entre o teatro e a vida na forma como gostamos de encenar os nossos dramas quando os apresentamos ao outro.

E depois acima disso tudo, um pouco como acontece com a Maria Judite de carvalho, é a qualidade da escrita e da imagística da escrita de FEP que se sobrepõe a tudo isso. O FEP poderia estar a falar sobre mecânica de retroescavadoras e ter a mesma qualidade.

Se tiver a oportunidade de ler o novo FEP diga-me o que viu e leu para lá do sexo.

Sylvia Beirute disse...

Caro José Manuel,

O Hugo disse tudo, mas não resisto em deixar a minha opinião, uma vez que não me sinto confortável quando alguém usa de um poder tal de generalização para, afinal, dizer tão pouco.
Em Portugal estamos pouco habituados a respeitar os riscos dos autores. Há uma tendência, por parte de alguns, em pegar num determinado aspecto e amplificá-lo a ponto de catalogar esse mesmo autor. Se alguém introduz o tema sexo, começa-se a reduzir a escrita até esse mesmo ponto.

Os romances de Fernando Esteves Pinto são desde logo romances de tensão entre personagens, proporcionadores de conflito, histórias de um imaginário que tenta, por vezes, deslocar a realidade para apresentar uma ideia metafórica ou imagética dessa mesma realidade.

Veja-se este Brutal...para se perceber isto. A opinião de alguns leitores ou leitoras pode, como é óbvio, variar. Se uma leitora só vê sexo num romance como Brutal, não seria aconselhável ler este tipo de literatura, pois não a entende.
A mesma coisa dirão essas mulheres acerca dos filmes do Lars Von Trier, por exemplo.

S.

Anónimo disse...

Teorias, são só teorias. Para um escritor que inquieta, que contamina, é natural que se lhe criem rótulos. a maior parte das vezes negativos.É legítimo. FEP escreve muitas vezes sobre sexo e mulheres.É verdade. Também deve ser verdade que muitas mulheres não gostem da sua crueza no tratamento das relações entre homens e mulheres, ou entre mulheres com elas mesmo.Mas Fernando não deve querer encher o Campo Pequeno de mulheres como o faz o Carreira. Aliás o Fernando não escreve para mulheres. Escreve para todos. Quanto ao que sei, o escritor é muito lido e apreciado por mulheres e das suas amizades mais próximas fazem parte muitas boas amigas (e, já agora, amigos). O que o main stream da literatura, e da intelectualidade, não suporta é ter um escritor fabuloso que não veio nem frequenta o status burguês da criação artística. FEP vem de um meio familiar e socio-económico pobre iletrado, mas digno, honrado e limpo.

Anónimo disse...

Ó Hugo, é preciso escrever romances-choque para entrar no clube das novas promessas? Ou por outras palavras, será que os futuros cânones só esperam por autores que vendem para umas poucas centenas de leitores?

Na minha modesta opinião acredito que os futuros nomes consagrados serão autores de públicos muito mais vastos, até porque serão esses mesmos a consagrá-los, com maior ou menor justiça, e não uma meia-dúzia de diletantes, impressionada com a dureza das abordagens incómodas, por muito que seja a sua qualidade literária. Nesse campo, está tudo escrito.

Mas isto digo eu que não percebo nada destas coisas, pelo menos na teoria (nunca a estudei, segui engenharia). Como escreveu um dia alguém que mencionas no teu post, eu nunca serei escritor.

Pedro

Hugo Xavier disse...

Bem Pedro,
Claro que não.
E neste momento, para ser sincero, creio que ninguém sabe bem como serão os cânones futuros na idade da globalização e dispersão cultural.
Autores mais literários como, por exemplo, Bolaño são autores que tocam públicos transversais.
O grande problema é que a qualidade literária está geralmente menos presente nos escritores que escrevem para a multidão. Porque estes seguem, normalmente, fórmulas.
Neste momento eu tenho de cumprir a minha função enquanto editor da Ulisseia e separar aquilo que no meu critério pessoal é digno de uma editora que visa sobretudo o segmento médio/alto. Isto não quer dizer que eu não trabalhe igualmente outros títulos noutras chancelas mais dedicados ao segmento médio/baixo (e digo isto sem desprimor para qualquer dos públicos).

Continuo a ver uma grande preocupação com a literatura choque quando a única coisa que quis destacar no livro do FEP é a qualidade da escrita quer pela carga imagística da linguagem poética quer pela articulação de diversos níveis de significação.

Quer neste livro quer no do PJM é sobretudo esta capacidade de dizer muitas coisas em poucas páginas que, em minha opinião, os faz muito bons livros.

A fronteira é ténue. Tenho dúvidas que o cânone seja feito pelas massas, creio que continuará a ser um cânone das elites e universidades.

Quanto aos juízos de valor sobre a tua escrita já te transmiti em tempos o que acho dela e creio que precisas de continuar para chegar lá. Há gente que o faz muito rápido - olha o Bolaño, há outros que demoram anos até atingirem o nível que lhes merecerá a publicação.

E há chancelas e editoras que trabalham para diversos públicos.

mas sobre tudo issofalaremos em breve.

abraço

h

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